Para além do enfoque político a Paraíso do Tuiuti fez uma provocação histórica, que boa parte da sociedade brasileira nega, a tardia abolição da escravatura, o Brasil foi o último país a “libertar” os negros escravizados, e isso o há 130 anos apenas, não passou de uma farsa. Ao questionar (afirmando)” Meu Deus, meu Deus, está extinta?”, escrito pelo carnavalesco Carnavalesco Jack Vasconcelos, a escola de samba joga na cara da sociedade brasileira uma das maiores hipocrisias da Nação. Essa Nação que foi fundada sobre o sangue dos negros escravizados, isso sem falar do sangue indígena.

Justificativa para o enredo: “Em 2018 se completam 130 anos da assinatura Lei Áurea, que oficialmente aboliu a escravidão no Brasil e 50 anos de um dos mais emblemáticos sambas enredos sobre essa passagem da história, o “Sublime Pergaminho”, defendido pela Escola Unidos de Lucas”. Em tom afirmativo a escola dizia “Meu Deus, meu Deus está extinta a escravidão, se transforma em uma pergunta, na Tuiuti, e provoca a reflexão sobre a desigualdade e a exploração do trabalho”.
A Escola fez uma viagem pela história da escravidão, no livro Abre Alas, um sinopse dos enredos de todas as escolas que distribuído à imprensa o autor do enredo explica, “velha companheira de caminhada da Humanidade. A ideia de superioridade, divina ou bélica, cobriu-a com o manto do poder. Pela força ergueu impérios e sustentou civilizações. Pela alienação justificou injustiças e legitimou a discriminação. Ganhou nome quando eslavos viraram ‘escravos’ nas mãos dos bizantinos.”

Contudo, se a escravidão, ao longo da história, não se concentrou apenas na escravização dos negros africanos pelos europeus, em nenhuma outra época ela foi tão responsável pela degradação humana e pelo enriquecimento de seus provocadores. “Fez da exploração do continente negro seu maior mercado”, diz a justificativa do enredo. a escravização dos africanos provocou a  “separação famílias, subjugou reis, aprisionou guerreiros, reduziu seres humanos a mercadorias”.
“Calunga Grande muito ouviu os lamúrios dos Tumbeiros abarrotados em sua ordem”, o navio negreiro que transportava os negros aprisionados, em piores condições do que se fossem cargas de animais. Numa viagem “norma” metade daqueles que eram transportados morria pelo caminho e era jogada ao mar. Apenas prejuízo calculado para um lucrativo “negócio”.
O Brasil não foi só o último país a “acabar” com a escravidão, mas quando agiu, não teve nenhuma motivação humanitária, não foi a consciência de que humanos não devem ser escravizados que motivou a boa ação da “redentora”, Princesa Isabel. Objetivos bem mais “importantes” foram levados em conta, para citar alguns: o país sofria forte pressão internacional para que libertasse os negros escravizados, em especial da Inglaterra – diga-se aquele país que havia enriquecido com tráfico negreiro, agora estava interessado em mercados consumidores, para seus produtos industrializados, portanto, também não era uma motivação humanitária que movia os ingleses a combater a escravidão -; a pressão internacional isola o Brasil; a elite brasileira não deseja que a abolição fosse uma conquista da luta contra a escravidão, era melhor que fosse um “presente” dos brancos; a escravidão não era mais lucrativa; a vinda de colonos europeus cumpriria um objetivo da elite, a saber, o “embraquecimento” do povo brasileiro.
Portanto, o “fim” da escravidão era favas contadas, bastava que fosse tomada a medida e o tempo “exato” de sua ação. Ainda assim teve forte oposição da elite brasileira que deseja ser “indenizada” pelo prejuízo de perder “seus escravos”. Mas era precisa apagar da história a forte resistência daqueles que jamais se entregaram passivos à escravidão. A escravidão “marcou com ferro os que ousavam lhe renegar, levantar a cabeça. Perseguiu os de alma indomável que corriam ao encontro do sonho quilombola. Quimeras da liberdade de uma raça pirraça fortificadas entre serras e matas que teimavam lhe enfrentar. ” A abolição, em forma de presente, fazia nascer o “mito do povo” cortado, que repousa em “berço esplêndido”.E um dos maiores obstáculos o para o enfrentamento do problema racial no país é o “mito da democracia racial”.  Para a ONU, isso é “frequentemente usado por políticos conservadores para descreditar ações afirmativas”. Nossa elite costuma dizer, por exemplo, que manter as políticas de ações afirmativas é desacreditar na capacidade dos negros em competir com os brancos, quando é sabido que tais políticas visão diminuir o abismo existente nas oportunidades de cada. Em outras palavras, as ações afirmativas não olham para o ponto de chegada, mas observam o contexto do ponto de partida.

Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. Em 2002, 98% dos alunos do ensino superior no País são brancos e apenas 2% são pretos e pardos. Ora é evidente que a falta de negros e pardos no ensino superior perpetua a exclusão social.
A política de ações afirmativas de acesso e permanência às universidades brasileiras tão combatidas pela elite nacional fez, na última década, o percentual de negros e pardos entre 18 e 24 anos, frequentando a universidade, saltar para 45%, dez anos antes, em 2004, esse percentual era 16,7% dos alunos pretos ou pardos, entre 18 e 24 anos nas universidades.
A saber, na contramão do discurso de senso comum de que as cotas são injustas, pois tiram o lugar dos brancos nas universidades, no mesmo período no caso dos estudantes brancos, o percentual de estudantes brancos entre 18 e 24 anos, em 2014, era de 71,4% frequentando a universidade. Em 2014, esse dado era 47,2%.
Um dos mecanismos para se combater o racismo e se fazer cumprir a lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da história africana, afro-brasileira e indígena. Romper a “europeização” dos currículos escolares. “Muito se fala da influência da Europa sobre a África, – geralmente de forma negativa, como na escravidão e no imperialismo. É de suma importância mostrar como a Europa subdesenvolveu a África – como as invasões, o colonialismo e o imperialismo levaram à África ao estado atual de pobreza e dependência estrangeira para que não se incorra no risco de tornar o subdesenvolvimento africano em algo natural, algo que sempre foi assim. Contudo, é de igual importância que se fale sobre a influência que a África pré-colonial teve sobre a Europa, da importância do Egito para a formação da civilização ocidental.” (Eliabe Vidal – Portal Geledés)
Da mesma forma é importante o estudo “quanto à história do negro no Brasil, a sua presença é apagada, exceto em relação à escravidão, porém durante muito tempo no Brasil colonial, a população preta excedia a população branca, sendo assim presumível sua participação nos movimentos históricos de forma igualmente intensa. É preciso ressaltar a presença do negro da construção das nossas grandes cidades históricas. Os monumentos históricos – incluindo igrejas, ruas, casas, etc. – que hoje admiramos foram muitas vezes construídos pelas mãos negras dos africanos que foram forçosamente trazidos a este país. Esta história frequentemente dá lugar às histórias dos donos das casas grandes, que nunca realizaram o trabalho árduo que garantiu a riqueza das quais seus descendentes até hoje se privilegiam.” (IDEM)
Segundo a ONU é preciso que o país “desconstrua a ideologia do branqueamento que continua a afetar as mentalidades de uma porção significativa da sociedade”, somente desta forma se combaterá de fato o racismo estrutural.
Portanto, a provocação feita pela escola de samba Paraíso de Tuiuti deve ser recebida com louvor, muito além da discussão política do golpe, o que muitos setores da esquerda, estranhamente prefeririam fazer. A riqueza sociologia e histórica do enredo rompe essa barreira. Ao perguntar se a “escravidão foi mesmo extinta”, colocou no colo da sociedade essa discussão. O Carnaval é uma grande festa popular. O historiador Marcelo Studinski afirma que quando falamos em Carnaval, estamos falando em Cultura Popular; mas quando falamos em Carnaval no Brasil estamos falando em Cultura Popular Afro-brasileira.
Como festa da Cultura Popular Afro-brasileira o Carnaval já propiciou, a nós educadores, um vasto material didático a ser usado em nossas aulas, devemos, em muitos casos, perder os ranços acadêmicos e levarmos tais materiais para as nossas salas de aula. Romper a ideia de um modelo europeu de humanidade que se cala diante das contribuições dos povos de outras etnias para a civilização mundial, faz se perpetuar o mito da superioridade branca.
Respondendo a questão levantada pela Escola de Samba, sim, a escravidão ainda existe e, portanto, não foi extinta. O golpe político que está a precarizar o trabalho e a situação do trabalhador no país, defendido pela mídia e pelos liberais, como solução para a crise econômica desnuda o caráter escravocrata da nossa elite.
A Reforma Trabalhista aprovada por um governo ilegítimo e um Congresso inconfiável, para dizer o mínimo, reduz a segurança do trabalhador e irá “escravizar” brancos pobres e marginalizados, mas será ainda mais cruel com a população negra, que repito a apenas 130 anos foi “liberta”.
Logo, a conscientização da população do que significa o golpe e as “reformas” propostas por ele, se torna essencial para que se faça a resistência, neste contexto a Paraíso do Tuiuti prestou um grande serviço. Não fez um desfile, mas aula de História e de Sociologia. A história não é, como desejam alguns, determinista, logo, a transformação social é sempre possível, acredito que a edução é a grande força propulsora da “revolução” que nos libertará a todos (e todas) dos grilhões que nos aprisionam.
Ao fim e ao cabo, a fala do carnavalesco ao falar sobre a sua criação, disse ele “sou formado pelo ensino público, fui uma criança de escola pública, me formei em uma federal, em Belas Artes. Então, a população ajudou a me formar, foi dinheiro público que ajudou a pagar meus estudos e a manter as instituições em que me formei. Preciso de alguma forma retribuir para a população esse investimento. É a maneira que eu posso prestar o serviço a ela (à sociedade), através da minha arte. Acho que é bom as pessoas se posicionarem mesmo. Acho bacana que o Carnaval tenha esse espaço e papel.” Jack Vasconcelos – Carnavalesco da Tuiuti – Essa é a importância da escola pública e, também, o motivo por ela ser tão atacada por aqueles que não desejam nenhuma mudança social.



fonte: a postagem

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